sábado, 29 de março de 2014

"Bem Vindo"

Está chovendo há um bom tempo. O céu está negro há tanto tempo que provavelmente as trevas devem ter engolido a luz. Morar em uma rua sem saída pode ter lá suas vantagens, mas não é tão emocionante assim. Bom, não tem saída. Não tenho vizinhos, ainda estou tentando me adaptar a gigantesca casa gótica com um patio imenso e um quintal com um lago, mas ainda está em uma rua, pena que não é do jeito que imaginava. Ainda tem caixas espalhadas por onde deve ser a sala. As paredes são de tijolos velhos,  que mantem a casa fria mesmo com um aquecedor gigantesco que falha. Os portões podem ser ouvidos mesmo tão longe. Eles rangem e me dão medo. Um portal sob a porta de entrada sustenta uma gárgula de cabeça para baixo que te olha descaradamente.

 Fantasma me olha enquanto permaneço em uma posição estranha sob o banco do lado da janela. Depois de anos consegui  realizar um sonho de infância, ter um banco para ficar ao lado da janela em dias de chuva, e quando consigo, bom, chove tediosamente e estou com preguiça para pegar um dos livros que se encontram quatro andares abaixo, onde deve ser a sala. A janela embaçada para qual olho faz algumas horas da para o lago, que parece aumentar a cada hora. Desisti de ir para chuva e receber essas boas vindas, se pelo menos tivesse alguém para me acompanhar, claro, duvido muito que Fantasma iria querer se molhar. Está cheiroso e com ar de quem não gostou nem um pouco da nova casa. Eu o entendo. O caminhão está estacionado lá em baixo abarrotado de coisas, os homens disseram que quando a chuva parar eles vão terminar o serviço, mas até lá a casa ficará pela metade. Acho que assim como eu na primeira visita, estão receosos. Você também teria se o portão da entrada rangesse tão alto que lhe dá arrepios gélidos que percorrem sua coluna vertebral.

Fantasma continua me olhando com aqueles olhos esverdeados enquanto ronronava, a coloração malhada de seus pelos se confunde com a coberta que deveria ser amarela com pontinhos pretos, mas esta tão gasta que possuis manchas negras e um tom caramelo. Respirei fundo  olhando o quão profundo era o teto cinza do quarto. Um lustre com prováveis cristais falsificados ficava a esquerda, próximo ao guarda-roupas, e um outro sem brilho algum que ficava balançando sutilmente mesmo sem vento à frente da porta.  Me virei levando os pés nus até o chão de mármore castanho. Frio. Tateei  o chão com os pés em busca das pantufas, mas é muito provável que estejam lá em baixo dentro do caminhão. Ela já está de olhos fechados  dormindo sobre cobertas quentes. Vou sentindo o frio entre os dedos dos pés até ela, me abaixo e acaricio sua pequena face  felina. Volto a me levantar refazendo uma nota mental:  achar a estrutura da cama dentro do caminhão antes de pegar um resfriado por dormir no chão. Saio do quarto logo em seguida.

Um longo tapete se estende pelo corredor do quarto andar, ele leva até o elevador quebrado e a escada duas portas trancadas antes. A maior parte das portas estão fechadas, as do primeiro antes levam a lugares comuns, as do segundo abrem quando querem, as do terceiro levam a escritórios e bibliotecas que dão em lugar nenhum.  Não estava procurando uma porta destrancada quando notei uma próxima ao velho elevador escolhia quando queria funcionar. Uma porta sem maçaneta, aliás.

Algumas semanas antes tinha acabado de receber a grande noticia. Me mudar. Novamente. Minha mãe estava com essa ligeira mania de se mudar, nesses últimos meses. Talvez ela estivesse tentando superar a perda do grande amor de sua vida, vulgo meu pai. Essa aventura de mudar estava me deixando deprimido, embora na casa atual, pequena o suficiente para uma meia sardinha caber, finalmente fiz amigos... Ou conhecidos. De qualquer maneira, era mais pessoas em uma lista de uma rede social que tenho conta. Deverá acontecer como qualquer outro, dia qualquer um velho conhecido/conhecida vai me chamar e perguntar como as coisas estão e como talvez faço falta. Embora não tenha ficado tempo o suficiente para alguém conseguir sentir realmente minha falta. Desisti do meu celular, tirei o chip fora, incrível como a maioria das cidades que minha mãe encontra para passar um temporada nunca tem sinal, sendo assim, como meu notebook ficou no conserto ainda em NY e nunca mais fui buscar. Estou recluso. Provavelmente indo para lugar nenhum... Novamente.

Depois de receber a noticia mais chocante da semana - ironia-, nem mesmo comecei a dizer como ela estava estragando minha adolescência ou algo que deveria parecer uma adolescência. Engraçado como a primeira coisa que me vem em mente quando recebo uma noticia como esta é de pegar o celular e ligar para alguém com quem eu mais tenha, digamos, me aproximado. Fui a sua casa. O vi sorrir, talvez seu sorriso tivesse dito tudo o que ele não disse, apertei os lábios e caminhei lentamente em direção a saída mais aproxima com aquela vontadezinha de um "não me deixe sair por aquela porta," mas ele deixou. Acho que não tem muito o que se fazer quando decidem sua vida por você. Seu perfume ficou em minhas roupas depois do abraço - como de costume um abraço triste-,  longo e constrangedor. Percebi ali que a maioria das coisas com ele são constrangedoras. Poderia ver problema nenhum em ter sido deixado ir, vi, e talvez por este motivo acabei sentado no meio fio alto da estrada que levava até a rua de sua casa, quase na esquina sua cor gasta, mas  maciça o suficiente para quebrar um pé, eu sei, já a chutei de raiva. Suspirei fundo e fiquei esperando o táxi que ele mesmo havia chamado. Provavelmente tinha gostado dele mais do que amigo. E novamente de coração partido.

Não esperei o táxi, comecei uma longa caminhada esperando que o céu que lentamente ia escurecendo tornando-se negro antes de chegar em casa. E foi mais ou menos isso que aconteceu. Durante o caminho vi rostos conhecidos de até então minha atual escola, rostos que pensei eu que talvez viesse a ter uma amizade e não apenas um balançada de cabeça as  cumprimentando quando passo na rua. Tento não rir disso, mas é a mais pura verdade. É estranho saber de coisas do gênero... Minha mãe iria me arrastar quando percebesse que a casa em que estávamos morando de alguma forma a faz lembrar do papai, eu ficaria relutante e logo em seguida colocaria as coisas novamente nas caixas que nunca são fechadas. Estou acostumado com mudanças. Ainda espero que isso esteja certo.

Ah, foi um susto para mim, quando cheguei na rua onde morava ele estava lá. Parecia um pouco aflito e questionável. Espontaneamente um largo sorriso se formou em meus lábios, mas tentei o esconder.  "Não quero que você vá" ele diz logo que chego perto, perto o suficiente para ver que estava contente em me ver.  Ainda me pergunto se era um bom ou um mau sinal. Não o convidei para entrar, de qualquer maneira minha mãe passaria a noite fora de casa, trabalhando.  Falamos sobre qualquer coisa, inclusive que se sentiu um pouco... abalado, talvez tenha sido a palavra que usou. No final de nossa conversa acabei por dizer que já estava acostumado, também disse que foi bom perceber que tenho um amigo. Por algum motivo quando disse a palavra "amigo" sua testa franziu e seus lábios permaneceram em linha reta. Suas ultimas palavras foram: "sabe onde me encontrar quando precisar... de... um.. am... amigo." Logo em seguida seu pai chegou, deu uma buzinada e ele abraçou-me apertado. Longo o suficiente para uma eternidade. Entrei em casa logo que o carro onde ele estava dobrou a esquina. A porta fez um eco, e percebi o quão vazio as coisas estavam se tornando.